Nesta nota, em linhas gerais, além de apresentar o conceito de multiplicidade de pontos singulares, trazemos, em perspectiva, a famosa Conjectura da Multiplicidade de Zariski e o contexto em que nossas principais contribuições sobre o assunto foram desenvolvidas e nossas parcerias científicas nesse projeto. Este texto foi escrito para fornecer um embasamento para algumas de minhas palestras sobre multiplicidade de pontos singulares.
Estrutura Analítica Local
Estamos no contexto de subconjuntos analíticos fechados $X\subset\mathbb{C}^n$. Dizemos que $X\subset\mathbb{C}^n$ possui a mesma estrutura analítica em $p\in X$ que $Y\subset\mathbb{C}^m$ em $q\in Y$ se existem vizinhanças $U\subset\mathbb{C}^n$ de $p$, $V\subset\mathbb{C}^m$ de $q$ e uma aplicação analítica $F\colon X\cap U\rightarrow Y\cap V$ com inversa $G\colon Y\cap V\rightarrow X\cap U$ também analítica. A definição acima define uma classe de equivalência no conjunto dos pares $(X,p)$. Uma classe de equivalência da relação acima é o que chamamos de uma estrutura analítica local. A linha de pesquisa intitulada Geometria Analítica Local tem como principal objetivo descrever e reconhecer todas as estruturas analíticas locais. Estabelecemos a classe de $(\mathbb{C}^n,0)$ como a estrutural analítica local mais simples e a denominamos por estrutura analítica local trivial.
Denotamos por $\mathcal{O}_{X,p}$ o conjunto das funções analíticas complexas definidas numa vizinhança do ponto $p$ sobre $X$ equipado naturalmente com as operações de adição e multiplicação provenientes do espaço das funções com valores em $\mathbb{C}$. Verifica-se que $\mathcal{O}_{X,p}$ é um anel local com ideal maximal $\mathcal{M}_{X,p}$ constituído das funções que aplicam $p$ no valor $0\in\mathbb{C}$.
Teorema Os pares $(X,p)$ e $(Y,q)$ definem as mesmas estruturas analíticas locais se, e somente se, $\mathcal{O}_{X,p}$ e $\mathcal{O}_{Y,q}$ são isomorfos como $\mathbb{C}$-álgebras locais.
Vale observar que o teorema acima oferece uma alternativa de estudo da Geometria Analítica Local via uma abordagem completamente algébrica.
Multiplicidade
A seguir, apresentamos o conceito de multiplicidade o qual aparece naturalmente como uma medida de não-trivialidade de estruturas analíticas locais.
Proposição (Definição) Seja $X\subset\mathbb{C}^n$ tal que sua dimensão numa vizinhança do ponto $p\in X$ é $d$. Se $L\colon\mathbb{C}^n\rightarrow\mathbb{C}^d$ é uma projeção linear genérica, então a sua restrição a $X\cap U$ define uma aplicação finita de grau $m$ para toda vizinhança suficientemente pequena $U\subset\mathbb{C}^n$ do ponto $p$. Além disso, o número inteiro $m$ não depende da projeção genérica escolhida. O número inteiro $m$ é chamado de a multiplicidade de $X$ em $p$ e é denotado por $\mu(X,p)$.
Como mencionado acima, no sentido que precisaremos abaixo, a multiplicidade $\mu(X,p)$ mede a não-trivialidade da estrutura analítica local do par $(X,p)$ quando $X$ tem dimensão pura numa vizinhança do ponto $p$, a saber: o par $(X,p)$ define uma estrutura analítica local trivial se, e somente se, $\mu(X,p)=1$.
Exemplo (Cúspide) $X=\{(x,y) \ : \ x^2=y^3\}$ em $\mathbb{C}^2$. Temos que a projeção ortogonal no eixo-$x$ \'e uma projeção linear genérica para $X$ no ponto $0\in X$ (pois não contém em seu núcleo vetores tangentes a $X$ no ponto $0$). Segue-se que $\mu(X,0)=2$.
Do ponto de vista algébrico, a multiplicidade de $X$ no ponto $p$ é introduzida via o Polinômio de Hilbert-Samuel do anel local $\mathcal{O}_{X,p}$ o qual apresentamos na proposição a seguir.
Proposição (Definição) Seja $X\subset\mathbb{C}^n$ tal que sua dimensão numa vizinhança do ponto $p\in X$ é $d$. Então, existe um polinômio $P_{X,p}$ de grau $d$ tal que $P_{X,p}(k)$ coincide com a dimensão do $\mathbb{C}$-espaço vetorial $\displaystyle\frac{\mathcal{O}_{X,p}}{\mathcal{M}_{X,p}^k}$ para todo inteiro $k$ suficientemente grande. Além disso, $d!$ multiplicado pelo coeficiente líder do polinômio $P_{X,p}$ é um número inteiro, o qual chamamos de multiplicidade de Hilbert-Samuel de $X$ em $p$.
De volta ao Exemplo da Cúspide acima, verifica-se que o polinômio de Hilbert-Samuel de $X,0$ é $P_{X,0}(t)=2t-1$, donde segue que a multiplicidade de Hilbert-Samuel de $X$ no ponto $0$ vale 2, isto é, coincide com $\mu(X,0)$.
De uma forma geral, como resultado não trivial da Geometria Analítica Local, a multiplicidade $\mu(X.p)$ coincide com a multiplicidade de Hilbert-Samuel de $X$ no ponto $p$. Assim sendo, recorrendo ao teorema, enunciado alguns parágrafos acima, o qual possibilita o estudo da Geometria Analítica Local via uma abordagem totalmente algébrica, recebemos que $\mu(X,p)$ é um invariante da estrutura analítica local de $(X,p)$ no seguinte sentido: se os pares $(X,p)$ e $(Y,q)$ definem a mesma estrutura analítica local, então $\mu(X,p)=\mu(Y,q)$.
Existência de moduli
Embora a multiplicidade seja bastante para identificar as estruturas analíticas locais triviais, o exemplo a seguir nos mostra que invariantes discretos não são bastante para descrever todas as estruturas analíticas locais.
Exemplo (4 retas) Seja $X_{t} \ : \ xy(x-y)(x-ty)=0$ em $\mathbb{C}^2$. Tem-se que para $t\neq s$ genéricos, os pares $(X_{t},0)$ e $(X_s,0)$ não possuem a mesma estrutura analítica local.
Em outras palavras, o exemplo acima demonstra que existe uma quantidade não enumerável de estruturas analíticas locais. Os exemplos do tipo acima foram obtidos em meados da década de 60. Especificamente, o Exemplo das 4 retas é devido a H. Whitney (1965).
Topologia e Geometria Local
Ainda na década de 60, resultados que apontaram para a possibilidade de descrever a topologia local de conjuntos analíticos somente com invariantes discretos muito impulsionaram a pesquisa no tema e atraíram eminentes matemáticos para questões ainda hoje em aberto.
Nos parágrafos seguintes, definiremos o conceito de topologia local de conjuntos analíticos empregado no parágrafo acima e explicaremos com precisão as afirmações lá enunciadas.
Conjectura da Multiplicidade de Zariski
Sejam $X$ e $Y$ subconjuntos analíticos fechados de um mesmo ambiente $\mathbb{C}^n$, e sejam $p\in X$, $q\in Y$. Dizemos que os pares $(X,p)$ e $(Y,q)$ são topologicamente equivalentes ou que possuem a mesma topologia local mergulhada em $\mathbb{C}^n$ se existem vizinhanças $U\subset\mathbb{C}^n$ de $p$ e $V\subset\mathbb{C}^n$ de $q$, e um homeomorfismo $F\colon U\rightarrow V$ tal que $F(X\cap U)=Y\cap V$ e $F(p)=q$.
Na década de 60, foi provado que existe uma quantidade enumerável de topologias locais mergulhadas de conjuntos analíticos; não sei a referência exata da primeira prova deste resultado, de todo modo, S. Lojasiewicz é uma boa referência para o tema.
Era conhecido por O. Zariski que a multiplicidade era um invariante da topologia local mergulhada de curvas analíticas no plano complexo, de modo que, em 1971, O. Zariski formulou a seguinte pergunta: se os pares $(X,p)$ e $(Y,q)$ de hipersuperfícies em $\mathbb{C}^n$ possuem a mesma topologia local mergulhada, então $\mu(X,p)=\mu(Y,q)$?
Estrutura Lipschitz Local
Dizemos que $X\subset\mathbb{C}^n$ possui a mesma estrutura Lipschitz em $p\in X$ que $Y\subset\mathbb{C}^m$ em $q\in Y$ se existem vizinhanças $U\subset\mathbb{C}^n$ de $p$, $V\subset\mathbb{C}^m$ de $q$ e uma aplicação Lipschitz $F\colon X\cap U\rightarrow Y\cap V$ com inversa $G\colon Y\cap V\rightarrow X\cap U$ também Lipschitz. A definição acima define uma classe de equivalência no conjunto dos pares $(X,p)$. Uma classe de equivalência da relação acima é o que chamamos de uma estrutura Lipschitz local.
Ressaltamos a importância de citar algumas das principais referências de resultados pioneiros na proposta de investigação da multiplicidade como invariante de estruturas locais mais rígidas do que topológicas e menos do que analíticas, a saber: no artigo [6], Gau e Lipman provaram a invariância da multiplicidade para estruturas locais diferenciáveis (Ephraim abordou o caso de estruturas locais continuamente diferenciáveis [5]) e, no artigo [4], assumindo restrições severas sobre as constantes de Lipschitz que conjungam dois paraes $(X,p)$ e $(Y,q)$, Comte mostrou que $\mu(X,p)=\mu(Y,q)$.
Em meados da década de 80, Tadeusz Mostowski provou que existe uma quantidade enumerável de estruturas Lipschitz locais analíticos; esse resultado estimulou sobremaneira a pesquisa sobre a Geometria Lipschitz Local de conjuntos analíticos. Estabelecemos a classe de $(\mathbb{C}^n,0)$ como a estrutural Lipschitz local mais simples e a denominamos por estrutura Lipschitz local trivial.
Em trabalhos recentes escritos em parceria com Lev Birbrair (UFC), Javier de Bobadilla (BCAM), Edson Sampaio (UFC), Lê Dung Trang (Aix-Marseille) e Misha Verbitsky (IMPA) provamos os seguintes resultados.
- Estrutura Lipschitz local trivial é equivalente a estrutura analítica local trivial [1] (Sampaio provou a versão mais completa deste resultado em [7]);
- Em dimensão 2, a multiplicidade é um invariante da estrutura Lipschitz local [2];
- Em dimensão maior do que 2, a multiplicidade não é invariante da estrutura Lipschitz local [3].
Em outras palavras, o primeiro resultado listado acima diz que multiplicidade igual a 1 é um invariante da estrutura Lipschitz Local. Quanto ao terceiro resultado acima, de fato, provamos que para qualquer dimensão $d$ maior do que 2 existem pares $(X,p)$ e $(Y,q)$ de dimensão $d$ com mesma estrutura Lipschitz local, porém com multiplicidades distintas. Portanto, os resultados 1 e 2 acima, juntamente com os resultados de Pham e Teissier que, no fim da década de 60, demonstraram que a multiciplicidade é invariante da estrutura Lipschitz local em dimensão 1, podem ser resumidos da seguinte forma: a multiplicidade é invariante da estrutura Lipschitz local somente em dimensão 1 e 2.
Referências bibliográficas
[1] BIRBRAIR, L.; FERNANDES, A.; LÊ D. T. and SAMPAIO, J. E. Lipschitz regular complex algebraic sets are smooth. Proc. Amer. Math. Soc 144 (2016), pp 983--987.
[2] J. DE BOBADILLA; FERNANDES, A. and SAMPAIO, J. E. Multiplicity and degree as bi-Lipschitz invariants for complex sets. Journal of Topology 11 (2018), pp 957--965.
[3] BIRBRAIR, L; FERNANDES, A. and SAMPAIO, J. E., Verbtisky, M. Multiplicity of singularities is not a bi-Lipschitz invariant. Math. Annalen 377 (2020), pp 115--121.
[4] COMTE, G. Multiplicity of complex analytic sets and bi-Lipschitz maps.
Real analytic and algebraic singularities (Nagoya/Sapporo/Hachioji, 1996 Pitman Res. Notes Math. Ser., vol. 381, pp.182--188, 1998.
[5] EPHRAIM, R. $C^1$ preservation of multiplicity. Duke Math. 43 (1976) pp. 797--803.
[6] GAU, Y.-N. and LIPMAN, J. Differential invariance of multiplicity on analytic varieties.
Inventiones Mathematicae 73 (1983), pp. 165--188.
[7] SAMPAIO, J. E. Bi-Lipschitz homeomorphic subanalytic sets have bi-lipschitz homeomorphic tangent cones. Selecta Math. (N.S.) 22(2), pp 553--559, (2016).
[8] ZARISKI, O. Some open questions in the theory of singularities. Bull. of the Amer. Math. Soc. 77 (1971), pp 481--491.
Bom dia professor Alexandre Fernandes, que artigo maravilhoso e bem escrito, foi ótimo aprender um pouco sobre o desenvolvimento da multiplicidade de conjuntos analíticos.
ResponderExcluirCaro Eurípedes,
Excluirobrigado pelo comentário, muita gentileza!